sexta-feira, 22 de junho de 2018

O mal em mim.

A noite fria era perceptível, com os pingos de chuva caindo sobre a janela aparentemente embaçada do grande apartamento. Do lado de dentro, eu estava como sempre fico em dias frios, apenas com uma coberta aveludada no sofá enquanto lia um livro e sentia o calor aconchegante vindo da lareira acesa. O silêncio do ambiente foi interrompido com o estrondo da porta se abrindo e a figura dela. Ela estava tirando seu casaco de frio pesado e pendurando-o ao lado da porta. Veio até mim, deitando sobre meu colo e entrando junto a mim nas cobertas. Eu tocava seus cabelos escuros bagunçados enquanto ela parecia estar relaxada com seus olhos fechados e sua testa franzida como sempre fazia quando estava pensativa demais com algo. Provavelmente foi um grande dia.  
  —No que está pensando? - pergunto e ela abre os olhos vagarosamente enquanto se arrumava de modo que pudesse me olhar.  
  —Hoje o dia foi difícil... A consulta com a psicóloga não foi muito boa, com ela me tratando como se eu fosse um bebê, mesmo sabendo que não gosto de ser tratada assim. Sou uma paciente adulta, com alguns problemas a mais que os outros, e não uma criança que precisa de cuidados vinte e quatro horas por dia. - A garota disse terminando com um leve revirar de olhos.  
 Era sempre assim com suas consultas às psicólogas. Ela já foi em vários diferentes e ainda assim, nenhum deles pareceu ser "adequado" para seu caso. Às vezes, eu era sua psicóloga, a melhor, segundo ela. 
—Ela cuida de você, e está tudo bem agora. Já faz um tempo que você não tem qualquer surto ou algo do tipo. Apenas deixe que ela cuide de você. São só algumas horas. - Disse, tentando passar tranquilidade.  
—É, talvez... Acho que eu posso aguentar isso por mais algum tempo. - Sorriu e se levantou, sentando ao meu lado com sua cabeça em meus ombros. 
O cheiro de flor de lótus emanava de seus cabelos. Suas mãos com as unhas sempre grandes e pintadas de cores discretas pousavam sobre as pernas por cima da calça de couro. Me sentia aliviada pois, depois de tanto tempo, ela estava ali, realmente ali e isso fez-me sentir viva novamente.  
—Sabe o que me lembrei? Foi em um dia com esse que nos conhecemos. - Disse de forma serena e levantou seu rosto para me olhar com um leve sorriso nos lábios 
—Sim, eu me lembro bem. Como me esqueceria de um dos seus maiores surtos? Ainda por cima comigo! Eu apenas passei por você! - Nós duas rimos de forma descontraída. Sabíamos que isso era normal, ainda mais para pessoas como nós.  
—Sei que deveria, mas não me arrependo de ter tido aquele "pequeno" ataque. Te conheci assim. Nosso jeito completamente descontrolado nos aproximou e nos tornou o que somos hoje. Não me arrependo de ter te conhecido. Mesmo que de um jeito um tanto quanto, diferente. - Disse com um grande sorriso nos lábios que foi prontamente correspondido por mim.  
Mesmo com nosso jeito e com nossos surtos que os outros consideram estranhos, nos encontramos ali, nos encontramos dentro de nós mesmas e nos fizemos sentir como nunca antes, em casa. Minha mente insana se sentia extremamente confortável assim como meu corpo se sentia da mesma forma ao seu lado.  
Casa, uma palavra tão curta e que significa tanto... Ela, ela era a minha casa, pois, só com ela eu me sentia livre para ser o que eu quisesse sem julgamentos e sei que a garota se sentia da mesma forma ao meu lado.  Quando dei por mim, seu rosto estava mais perto, tão perto que era possível sentir sua respiração sobre a minha pele. Nossos rostos chegaram cada vez mais próximos e, quando percebi, havia acordado de meus devaneios. 
O que estava pensando? Ela morreu. Morreu a tanto tempo... Tempo demais. Meus demônios a matara. Ela era a minha casa... Mas eu nunca me senti completamente bem em casa, ou foi isso que eles me fizeram acreditar.  
Agora, de pé na sala do apartamento completamente frio, sem o calor da lareira ou de qualquer coisa que mantinha meu corpo aquecido, me pego olhando aquela foto, aquela maldita foto tirada no dia antes do ocorrido, parecíamos tão felizes... Ou não? Nós éramos felizes! Não somos mais.  
Sinto que eles estão voltando para me assombrar como todas as noites. Eles me fazem sentir-me culpada pelo que fiz. Não consigo. Não aguento mais me sentir isso. Sinto-me culpada por mesmo depois de tudo, ainda querê-la ao meu lado.  
Mas eles me assombravam como os monstros embaixo da cama das crianças. Porém, diferente delas, não tenho medo desses demônios, eles são meus e não irei mais fugir. Não irei correr. Deixarei que eles me consumam por completo. Com um único fósforo em minha mão e com a casa com gasolina o suficiente, o acendi 
Não queria mais me sentir culpada. Ela não está ali e eu nunca mais irei vê-la, nunca. As chamas me consumirão junto a esses sentimentos incontroláveis dentro de mim. Eu venci meus demônios, me destruí antes que eles o fizessem. Talvez eu já estivesse morta por dentro, afinal, perdi a única coisa que me mantinha completamente viva, perdi todo o resto de humanidade que ainda existia em mim. 
E depois de tudo destruído, não havia mais culpa ou remorso, mas um sentimento continuou. Algo forte o bastante para aguentar o calor das chamas. Um sentimento que ultrapassou o corpo, sentimento esse que nunca sumirá e estará sempre marcado. 
O amor que lá existira. 

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